O sentido oculto da dança
Tudo o que é vivo se move; movimento é vida!
Dançar é mover-se com consciência, é
plasmar no corpo o sentimento de se viver.
O verdadeiro centro de um círculo é um ponto. Um
ponto, no entanto não tem dimensão nem lugar. Assim, ele escapa não apenas à
nossa percepção, mas também à nossa imaginação. Não pertence ao nosso mundo -
porque nele tudo tem extensão e dimensão, pois o mundo é forma. O ponto,
contudo, faz parte de uma outra ordem de ser, existe para além do mundo; é
metafísico, no sentido do termo. O ponto simboliza a unidade, a totalidade, a
perfeição, sendo por isso também, em quase todas as culturas e épocas, um
símbolo de deus. O ponto tudo contém em estado potencial, não em estado
manifesto. Dele nascem o círculo e a esfera, que são as suas formas de
manifestação. Aquilo que no ponto ainda é potencia metafísica ganha através do
círculo e da esfera a sua configuração. O círculo é um ponto mais uma dimensão,
assim, ele vive do ponto central, e é definido por ele, mesmo quando esse ponto
não é apreensível por nós. O ponto e círculo - deus e o mundo - o uno e o
múltiplo - o irrevelável e o revelável - o conteúdo e a forma - o metafísico e
o físico - são muitos pares de conceitos que se referem à mesma coisa.
A lei do mundo é
o movimento, a lei do centro é a quietude. Viver no mundo é movimento,
atividade, dança. Nossa vida é um dançar constante ao redor do centro, um
incessante circundar o uno invisível ao redor do qual nós - tal como círculo -
devemos nossa existência. Vivemos do ponto central - ainda que não o
possamos perceber e temos saudades dele. O círculo não pode esquecer sua
origem, também nós sentimos saudade do paraíso. Fazemos tudo o que fazemos
porque estamos à procura de um centro, do nosso centro.
A dança, como imagem corporal da criação, é a
forma mais antiga de magia e é mitologicamente a chegada da luz, o princípio do
mundo, assim como o descobrimento da realidade subjetiva, a habilidade do homem
para refletir, manter e prosseguir a evolução, a capacidade de perceber suas
ações em relação ao sagrado, a visão de sua própria imagem circunscrevendo o
desconhecido.
A dança como expressão do homem movido por um poder transcendente é também a primeira manifestação artística; antes que o homem expressasse sua vida mediante elementos materiais, fê-lo através de seu próprio corpo. O homem sempre dançou por alegria, tristeza, amor, medo, ao amanhecer, na morte, no nascimento. O movimento da dança proporciona-lhe a possibilidade de aprofundar-se dentro de sua própria existência. Em seu sentido mais puro, é uma síntese das belas artes, sendo a mais viva e humana, já que tem por instrumento interpretativo o próprio corpo, e é música, escultura, pintura, arquitetura... Converte o corpo no melhor dos instrumentos musicais. Afinado, educado, polido, através do cultivo rítmico, o corpo, sob um plano inspirador, sob um manto espiritual da harmonia, converte-se em canal, em ponte através da qual se manifesta o invisível, comunicando-se, assim, com o manisfetado, com o homem, e é ali onde reside o alto valor pedagógico de dança, sempre vinculado ao mais nobre e elevado, dos êxtases artísticos.
Através da dança pode-se penetrar no mistério
interior. A divindade humana, essa na qual criam os homens das velhas
civilizações que nos precederam, revela-se em majestade naquele que se
transfigura através da plástica rítmica. Cada dança é a metamorfose que
leva à transformação do dançarino de deus, imitando o trabalho da divindade,
transmutando-se.
Fala-se muito da solidão do homem no mundo
contemporâneo e da divisão profunda de seu ser. Nós dissociamos a educação do
corpo da educação do espírito e ambas desse controle que chamamos, segundo
nossos costumes: alma, coração, intuição, conhecimento transcendente. As ciências
físicas e naturais fazem abstração desse princípio e de sua difusão no
universo. Nossa religião não satisfaz as necessidades da nossa
inteligência. Nosso intelecto nega o corpo ao passo que a medicina nada quer
saber da alma ou do espírito.
Num universo de intensa mecanicidade, as pessoas
permanecem como atuantes distanciados de si durante todo o dia no escritório,
no automóvel, em casa, diante da televisão, à mesa, usando muito pouco a
criatividade possível a cada um, precipitam-se, quando chega o fim da semana ou
feriado, numa atividade pseudo-esportiva incoerente sem qualquer relação com a
existência profunda de cada um e de todo o mundo: aqui o espírito, lá o corpo,
mais adiante o sexo, do outro lado o coração - torvelinho incessante cuja alienação
gradativa é profundamente sentida por todo ser humano nos dias de hoje.
Na dança o homem se encontra em totalidade
através de seu corpo, espírito e coração.
ela é também uma meditação, um meio de conhecimento, a um só tempo
introspectivo e do mundo exterior.
Há alguns anos, o coreógrafo Maurice Bejart
encontrou na índia um mestre yogi autêntico e muito considerado. Revelou-lhe
seu desejo de fazer yoga de maneira mais profunda, e ele lhe respondeu:
"A palavra yoga significa união. esta união, você poderá
encontrá-la na dança, pois a dança também é união. você é dançarino. Shiva, o
Senhor do mundo, o grande yogi, tem igualmente o nome de Nataraja, o rei da
dança... Você é dançarino, você tem sorte. Que a sua dança seja o seu yoga, não
procure outro".
Mais tarde, na hora em que se separou dele, este
olhou-o e disse: "Ah!
se todos os ocidentais pudessem reaprender a dançar".
Mas, todos nós dançamos constantemente;
precisamos contudo, viver cada vez mais conscientemente as leis dessa dança,
que a partir de um centro, se expande em linhas, planos e volumes, acessando
espaços imateriais; aquela na qual o homem expresse pelos seus veículos :
físico, vital, emocional e mental o ser superior que guarda em si e que
justifica a existência.
Texto de Arnaldo leite de Alvarenga na revista Seja, leitura
corporal
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